sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Herbert Marcuse

Herbert Marcuse


Cultura e Ideologia no Capitalismo Avançado



   Não obstante, essa sociedade é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; sua paz, mantida pela constante ameaça de guerra; seu crescimento, dependente da repressão das possibilidades reais de amenizar a luta pela existência.


   Como um universo tecnológico, a sociedade industrial desenvolvida é um universo político, a fase mais atual da realização de um projeto histórico específico – a saber, a experiência, a transformação e a organização da natureza como o mero material de dominação. Ao se desdobrar, o projeto molda todo o universo da palavra e da ação, a cultura intelectual e material. No ambiente tecnológico, a cultura, a política e a economia se fundem num sistema onipresente que engolfa ou rejeita todas as alternativas. O potencial de produtividade e crescimento desse sistema estabiliza a sociedade e contém o progresso técnico dentro da estrutura de dominação. A racionalidade tecnológica ter-se-á tornado racionalidade política.


   Em virtude do modo pelo qual organizou a sua base tecnológica, a sociedade industrial contemporânea tende a tornar-se totalitária. Pois totalitária não é apenas uma coordenação terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-econômica não-terrorista que opera através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos. Impede, assim, o surgimento de uma oposição eficaz ao todo. Não apenas uma forma específica de governo ou direção partidária constitui totalitarismo, mas também uma sistema específico de produção e distribuição que bem pode ser compatível com o 'pluralismo' de partidos, jornais, 'poderes contrabalançados' etc.


   Tais necessidades têm um conteúdo e uma função sociais determinados por forças externas sobre as quais o indivíduo não tem controle algum; o desenvolvimento e a satisfação dessas necessidades são heterônomos. Independentemente do quanto tais necessidades se possam ter tornado do próprio indivíduo, reproduzidas e fortalecidas pelas condições de existência; independentemente do quanto ele se identifique com elas e se encontre em sua satisfação, elas continuam a ser o que eram de início – produtos de uma sociedade cujo interesse dominante exige repressão.


   A cultura industrial avançada é mais ideológica do que sua predecessora (burguesa), visto que, atualmente, a ideologia está no próprio processo de produção. O aparato produtivo e as mercadorias que ele produz vendem ou impõem o sistema social como um todo. Os meios de transporte e comunicação em massas, as mercadorias, casa, alimento e roupa, a produção irresistível da indústria de diversões e informação trazem consigo atitudes e hábitos prescritos, certas reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores mais ou menos agradavelmente aos produtores e, através deles, ao todo. Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua falsidade (...) ao se tornar um estilo de vida.


   A celebração da personalidade autônoma, do humanismo, do amor trágico e romântico parece ser o ideal de uma etapa superada do desenvolvimento. O que está ocorrendo agora não é a deterioração da cultura superior numa cultura de massa, mas a refutação dessa cultura pela realidade. A realidade ultrapassa sua cultura.


   É uma cultura antiquada e ultrapassada, e somente sonhos e regressões infantis podem recuperá-la. Mas essa cultura é também, em alguns de seus pontos decisivos, pós-tecnológica. Suas imagens e posições mais avançadas parece sobreviverem à sua absorção em comodidades e estímulos administrados; continuam assombrando a consciência com a possibilidade de seu renascimento na consumação do progresso técnico. São a expressão da alienação livre e consciente das formas estabelecidas de vida com a qual a literatura e as artes se opuseram a essas formas até mesmo onde as adornaram.


   É verdade, mas voltando à vida como clássicos, eles voltam à vida diferentes de si mesmos; são privados de sua força antagônica, do alheamento que foi a própria dimensão de sua verdade. O intento e a função dessas obras foram, assim, fundamentalmente modificados. Se antes estavam em contradição com o status quo, essa contradição se mostra hoje aplanada.


   A análise lógica e lingüística demonstra que os velhos problemas metafísicos são ilusórios; a busca do 'significado' das coisas pode ser reformulado como a busca do significado das palavras, e o universo estabelecido da palavra e do comportamento pode fornecer critérios perfeitamente adequados para a resposta.


   Em troca dos artigos que enriquecem a vida deles, os indivíduos vendem não só o seu trabalho, mas também seu tempo livre. A vida melhor é contrabalançada pelo controle total sobre a vida. As pessoas residem em concentrações habitacionais – e possuem automóveis particulares com os quais porém já não podem escapar para um mundo diferente. Possuem gigantescas geladeiras repletas de alimentos congelados. Têm dúzias de jornais e revistas que esposam os mesmos ideais. Dispõe de inúmeras opções e inventos que são todos da mesma espécie, que as mantêm ocupadas e distraem sua atenção do verdadeiro problema – que é a consciência de que poderiam trabalhar menos e determinar suas próprias necessidades e satisfações. A ideologia atual em que a produção e o consumo reproduzem e justificam a dominação.


   Por sua posição central no processo produtivo, a classe operária não perdeu sua significação objetiva como agente histórico da transformação. Mas se continua sendo uma classe revolucionária "em si", não o é mais "para si", isto é, subjetivamente. Deixou de ser a negação viva do sistema. Com a assimilação do proletariado, fecha-se o espaço da contestação radical. Esse fechamento constitui o paradigma e a precondição de todas as outras formas de integração que caracterizam, em diferentes níveis, a sociedade unidimensional.

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